sexta-feira, setembro 17, 2004

Verdades

Minha mãe nunca me treinou para casar. Nunca me ensinou um ponto de bordado, nunca me deu um pano de prato para o meu enxoval. Sempre a ouvi dizer: "Vai estudar, trabalhar, viajar e, quando não tiver mais nada para fazer, pode até pensar em casar com alguém". É claro que qualquer terapeuta vai diagnosticar projeção. Era assim que ela queria a própria vida. E uma coisa que muitos homens não conseguem entender é que nós, mulheres, passamos a vida tentando agradar às mães. Por isso, fiz tudinho o que ela mandou. Estudei, trabalhei, viajei muito. É claro que intercalei tudo isso com uns amores caprichados. Alguns fracassaram, outros deram certo até onde tinham que dar, mas a maioria me fez bem. Os meus amores me ajudaram a ser a pessoa que sou hoje.

Hoje em dia, eu posso dizer, sem medo de parecer menos independente, que quero namorar alguém. Conversar, ir ao cinema, passear, falar besteira, beijar, fazer amor. Mas não acredito em príncipe encantado. E talvez seja por isso que o meu ainda não apareceu. E se os príncipes encantados forem que nem fadinhas: quando alguém diz que não acredita neles, um morre esturricado? Já matei um monte, sorry, meninas.

Mas eu não quero um príncipe, eu quero um Zé. Que Zé? Eu quero um Zé que nem o da Adélia Prado:

Para o Zé

Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e não sabia,
eu que já amava de extremoso amor o peixe,
a mala velha, o papel de seda e os riscos de bordado,
onde tem o desenho cômico de um peixe —
os lábios carnudos como os de uma negra.
Divago, quando o que quero é só dizer te amo.
Teço as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha,
alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino,
menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate.
Eu te amo, homem, amo o teu coração, o que é, a carne de que é feito,
amo sua matéria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba. Esmero.
Pego tua mão, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo,
falo em latim pra requintar meu gosto:
“Dize-me, ó amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu não ande vagueando atrás dos rebanhos de teus companheiros”.
Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memória ama fica eterno. Te amo com a memória, imperecível. Te alinho junto das coisas que falam uma coisa só: Deus é amor.
Você me espicaça como o desenho do peixe da guarnição de cozinha, você me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me dá uma tarefa, me emprega, me dá um filho, comida, enche minhas mãos.
Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto oboé. Meu coração vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho.
Assim, te amo do modo mais natural, vero-romântico, homem meu, particular homem universal. Tudo que não é mulher está em ti, maravilha. Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos, a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com água tépida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus pés, o dorso e a planta deles eu beijo.

O texto acima foi extraído do livro “Poesia Reunida”, Editora Siciliano – São Paulo, 1991, pág.99.

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