terça-feira, julho 27, 2004

Doces Lembranças

Interessante essa questão da memória. Memória emocional, seletiva, eu quero dizer. Há dias, semanas, meses inteiros em que eu experimentei sensações muito boas, em que eu me diverti muito, mas dos quais eu não guardo a mínima lembrança. Mas, para contrabalançar, guardo de coração alguns momentos, alguns segundos, gestos, olhares...

Lembro uma noite, já eram umas nove horas, eu ainda estava no trabalho, diante da tela do micro, sem coragem de voltar para casa. Tudo por causa de um homem. Diante de mim, a tela com alguma notícia, da qual eu não me recordo e, sobre a mesa, o resultado de um exame. Eu estava me sentindo paralisada, como se fosse personagem de um autor que, de repente, sofre de uma ausência de criatividade. Não havia na minha cabeça a idéia da próxima fala, do próximo movimento.

O resultado daquele exame já era esperado há tempos. E como foi adiado! Como foi discutido, brigado, gritado, calado, sussurrado...o exame era do meu pai. E o resultado dizia que ele tem uma atrofia cerebelar. Não vou falar desse problema porque ele não é o motivador, o fim das coisas. Nenhuma doença é. Os problemas de saúde são pontos de partida.

Vou falar do meu pai. Sempre escutei histórias das minhas amigas sobre as coisas que os pais faziam para elas. Presentes, surpresas, domingos no parque, no clube. Meu pai nunca foi assim. Sim, ele dava presentes, sim, ele nos levava ao clube, ao parque. Mas nunca se permitiu realmente nos acompanhar. Nós é que o acompanhávamos. Talvez porque a minha mãe sempre tenha sido ultraprotetora e, aí, não sobrava muito espaço para ele. Talvez porque não houvesse essa vontade nele, o que eu acredito ser mais provável. Os primeiros pedaço sempre eram para ele. Os melhores bombons. Os nossos silêncios. Um dia, na escola, tive que fazer uma redação sobre o que aprendi com o meu pai. Fiquei meio sem saber o que escrever, mas depois me veio a verdade que trago no meu coração até hoje. Meu pai me ensinou a não esperar nada de ninguém. A lutar pelo que eu queria sozinha. A acreditar no meu potencial.

Então, vieram os primeiros sintomas. As alterações de humor, os esquecimentos, o falar sozinho, os delírios. E ele virou uma criança. Ia trabalhar, tinha todas as atividades normais de um adulto, mas em casa era uma criança. E foi difícil aceitar isso. Porque um pai deveria proteger, e não ser protegido. Deveria apoiar, e não precisar de apoio. Mas deixei falar mais alto o que eu havia aprendido com ele há anos: não esperar nada. Amá-lo. Simplesmente.

Um dia, ele esqueceu quem eu era. Ficou desconfiado, perguntou quem era aquela moça que estava dentro da nossa casa. Eu chorei muito. Mas decidi continuar o exercício de amá-lo, sem esperar nada. Eu o levava à hidroterapia, ajoelhava para calçar as sandálias dele, secava e penteava o cabelo dele, escutava as suas histórias, de que era o melhor da turma, de que tinha melhorado muito, sempre fazendo esforço para entender aquela voz enrolada.

E ele melhorou. Não 100%, é lógico, mas melhorou. E, no dia em que descobri que tenho um tumor na hipófise, fui comunicar à minha família. Falei brincando, tentando não dar uma importância maior do que era preciso. E o meu pai chorou. E disse: "Filha, você me ajudou tanto quando eu estava ruim. Fico triste por pensar que não posso ajudar você agora". E estava ali. Todo o retorno que eu esperei dele. Ele sabia, tinha consciência de que eu o havia ajudado. Era mais do que eu poderia esperar.

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